“Fazia tempo que o pato sentia que algo
não ia bem”, diz o narrador. Nesse momento conhecemos a morte, no mesmo
instante em que o pato repara que ela está acompanhando-o. A morte com seu
camisolão quadriculado e sapatilhas pretas. Ela é miúda, quase delicada, a
despeito da cabeça de caveira. Tem a medida do pato, como se fosse seu duplo ou
sombra, e carrega uma tulipa roxa – algo que nunca é mencionado no texto e
que o pato nem sequer percebe ou problematiza. Erlbruch faz o pato reagir à
presença da morte com uma sutileza marcante. Ele arregala os olhos, o corpo
ereto, e pergunta: “você vai me levar agora?”. A morte diz que está sempre por
perto por via das dúvidas.
O pato, por sua
vez, demonstra uma gentileza ingênua: “Vamos até o lago?”, pergunta. “Esse
era o medo que a morte tinha”, mas o pato a convence. Depois do mergulho, ele
se oferece para aquecê-la: “Ninguém jamais havia feito a ela uma proposta
parecida”. Na página inteiramente branca, Erlbruch desenha um pedaço de arbusto
e o pato, cobrindo o corpo frio da morte com suas asas e pescoço lânguidos. Assim, os dois iniciam um convívio imprevisto, improvável.
Se a morte num primeiro momento assusta o pato, em outro, ela se mostra paciente. Mais do que isso, ela é
(quase) seduzida pela vida. A maneira como Erlbruch põe os dois para
conversarem, e a animação contida demonstrada pela morte quando ainda existe a
possibilidade dela passear um pouco mais, revelam uma relação de estranha
familiaridade, um encontro tão inevitável como natural. Quando o
pato começa a sucumbir, aparece um corvo solitário no centro da página. O
pássaro voa sem a companhia das palavras na página. Grita de bico aberto, em
silêncio estridente. O pato começa a fraquejar. Aos poucos, a relação entre ele e a morte se torna contemplativa. “Nas semanas seguintes, eles
foram cada vez menos ao lago. Ficavam a maior parte do tempo sentados na grama,
e falavam pouco”.
“Estou com frio – disse o pato uma noite – Você não quer me
esquentar um pouco?” A imagem que acompanha essa pergunta é a do pato segurando
as duas mãos da morte. Estão cara a cara, próximos como em nenhuma outra página
do livro. Sentimos uma pontada. Sabemos o que vai acontecer. Mesmo assim
viramos a página, pois temos confiança nessa morte, nem invasiva, nem
truculenta, essa morte sub-reptícia, que é afinal um fato da vida, nos
transmite uma estranha coragem. E assim, na próxima página, em que pela
primeira vez aparece a cor azul, vemos a morte sentada ao lado do pato,
observando sua figura quieta e serena com uma expressão de (quase) tristeza.
“Alguma coisa tinha acontecido”, escreve o narrador.
Uma neve fina e delicada – pontos minúsculos na página azul – cai sobre
os dois. É chegado o inverno, o luto, o recolhimento. A morte então alisa as
penas no corpo do pato. Não vemos o seu gesto porque Erlbruch prefere
apenas dizê-lo: “A morte alisou algumas penas que tinham se arrepiado um
pouquinho”. Imaginamos a morte
deixando seu rastro no corpo do pato, feito uma marca invisível. E então, como
se fizesse parte de uma solenidade, a morte caminha com o pato nos
braços até o rio, o pato cujo pescoço outrora quente e aconchegante, pende, sem
vida. A morte molha os pés, embora não goste de se molhar (como Erlbruch nos
mostrou em uma das primeiras páginas do livro), põe o pato na água, e a tulipa
em cima do corpo, dando-lhe um “leve empurrãozinho”. À beira do rio imenso, ela observa o pato aos poucos desaparecer. “Por pouco a morte não ficou
triste. Mas assim era a vida”.
Clique aqui para ler uma entrevista com Wolf Erlbruch.
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